É comum vermos em filmes e novelas situações na qual o pai se utiliza da frase “Vou te deserdar!” para tentar impedir que o filho case com alguém que não é de seu agrado ou para tentar coagi-lo a respeitar alguma de sua vontades. Todavia, para o Direito, deserdar alguém não é tão simples quanto parece.
O primeiro ponto a se esclarecer é que somente os descendentes, ascendentes e cônjuge do autor da herança podem ser deserdados (os quais tecnicamente são chamados de herdeiros necessários), contudo, para deserdá-los, a mera declaração de vontade do autor da herança não é suficiente. É necessário que ele informe em testamento o herdeiro a ser excluído da herança.
Pois bem, mas, então, em quais hipóteses será possível deserdar um herdeiro?
Considerando que, com a deserdação, o herdeiro perde todos os direitos em relação ao patrimônio do falecido, o legislador teve o cuidado de prever hipóteses específicas para o cabimento desse ato, a fim de evitar uma privação de patrimônio sem motivos.
Nesse sentido, conforme os art. 1.814 do Código Civil, podem ser deserdados:
- os herdeiros que atentarem contra a VIDA do autor da herança (falecido), seu cônjuge, companheiro ascendente ou descendente (Ora, pudera tal hipótese! Caso contrário estar-se-ia apoiando que o indivíduo recebesse uma vantagem pela prática de seu crime);
- os herdeiros que atentarem contra a HONRA do autor da herança, seja o acusando caluniosamente ou incorrendo em crime contra sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
- os herdeiros que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem a LIBERDADE DE TESTAR do autor da herança, impedindo o autor da herança de dispor livremente de seus bens por testamento ou codicilo (documento sobre disposições especiais sobre enterro, pequenos valores etc).
Além dessas hipóteses previstas a todos os herdeiros necessários, o Código Civil ainda prevê, nos arts. 1.962 e 1963, hipóteses específicas para a deserdação dos descendentes por seus ascendentes (ex: quando o filho deserda o pai, por exemplo) e dos ascendentes pelos descendentes (ex: quando o pai deserda o filho, por exemplo). Vejamos
Hipóteses de deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
a) Ofensa física; (agressões corporais)
b) Injúria grave; (expressões depreciativas)
c) Relações ilícitas (envolvimento amoroso e/ou sexual) com a madrasta ou com o padrasto;
d) Desemparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Hipóteses de deserdação dos ascendentes pelos seus descendentes:
a) Ofensa física;
b) Injúria grave;
c) Relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;
d) Desemparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.
Além disso, por mais óbvio que pareça, vale frisar que a orientação sexual do indivíduo NÃO pode ser justificativa para deserdação. Isso porque, seguindo as lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[1], “não podem os parentes controlar as manifestações afetivas e sexuais de outrem”. Deste modo, “eventuais práticas ligadas ao exercício de liberdade e autodeterminação sexual e afetiva, que estão albergadas em sede constitucional, não podem servir para justificar a deserdação”.
Por fim, cabem dois detalhes:
Primeiro que os efeitos da exclusão do herdeiro são pessoais, ou seja, atingem somente a ele, de forma que os descendentes desse herdeiro não perderão o direito de receber a herança em seu lugar. Caso o filho seja menor de idade, o herdeiro deserdado restará impedido de participar da administração dos bens que serão destinados àquele.
Em segundo lugar, vale lembrar que 50% do patrimônio de um indivíduo é obrigatoriamente destinado aos referidos herdeiros necessários (desde que não deserdados), mas os demais 50% podem ser livremente indicados para quem a pessoa quiser, por meio de testamento, independente de possuir herdeiros necessários.
Feitas todas essas considerações, antes de esbravejar “Vou te deserdar!”, o recomendável é que o autor da herança se certifique, como base nos dispositivos, se, de fato, é possível promover a deserdação, bem como cumprir os requisitos para tanto: valendo-se de um testamento e da ação judicial de deserdação, a ser ajuizada pelos demais herdeiros.
[1] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: sucessões- 2.ed.rev.ampl. atual- Salvador: JusPodivm, 2016.